Os passos suaves mesmo em terreno acidentado sempre fazem do andar minha forma preferida de locomoção, por isso apesar de ter de percorrer grandes distâncias entre minha humilde casa até o canto verde da cidade - aliás uma das poucas cidades que contavam com um parque isolado fazendo dele quase um meio rural, eu me contentava de caminhar aqueles quilômetros. Antes de absorver o costume da andança, houve a descoberta do lugar que me atrairia.
Nos limites da área urbana encontrava-se uma bela entrada para o Parque-Reserva Municipal, um misto de bosque, parque e área de preservação. O clima ameno como sempre, possibilitava uma grande variedade de árvores de todos os tipos, algumas rastejando, outras levantavam-se imponentes por vários metros, terminando em uma linda copa que floria-se toda primavera, colorindo ao longe todo o gradiente verde que era a paisagem.
Estava já há algum tempo naquela cidade, mas todos esses anos foram muito despercebidos, e todo o descaso com os prazeres de um lazer me fizeram ignorar aquele parque por muito tempo. Eu sempre tinha que fazer algo, não era necessariamente importante, até porque importância é relativa para os valores da época e circunstância, por isso na verdade, vendo pela perspectiva atual nada que eu fazia era importante, foram apenas desperdícios consecutivos de ações e atividades que se resumem no tempo.
Mas finalmente certa tarde, enquanto eu ainda estava me conscientizando para a variação da estagnada rotina, peguei um ônibus diferente. Toda quarta feira tinha aulas de arte no centro de convenções municipal, provavelmente a única coisa em minha rotina da época que não causa arrependimento, ficando do outro lado da cidade, era uma longa viagem. Muitas linhas passavam por ali, era como um centro da cidade, mas não ficando no centro. Logo ao lado era uma área industrial, não sei ao certo o que se fazia lá, não pareciam tão poluentes assim, fumaça branca e alguns caminhões carregando resíduos tóxicos. Ninguém que tivesse opção moraria naquela área com certeza, apesar disso não sei o que levou a prefeitura a construir um centro de convenções ali, diria que foi de certa maneira inteligente, afinal promoveu um "boom" no comércio local, o que levou à uma melhora na qualidade de vida daquele povo esquecido mas muito carismático que sempre que podia me convidava para jogar futebol nos terrenos baldios da região, era simples e divertido.
Na espera do ônibus no ponto, já estava acostumado a esperá-lo por cerca de 15 minutos no máximo, porém neste dia estava demorando um pouco mais, talvez exatamente porque as aulas foram encerradas antes do tempo normal, haveria uma feira de cosméticos naquele dia e toda a preparação atrapalhava a concentração necessária para se traçar linhas, afinar violões, colorir quadros, cantar em coral ou escrever boas estórias. Então finalmente ele chega, mas só depois de entrar percebi que o destino era na verdade o nobre Bairro das Gramíneas, ao menos felizmente parava em um terminal que possuía uma linha direta para minha casa, o que me acalmou perante este erro perfeitamente compreensível.
O trajeto se passava rapidamente ao olhar pela pálida janela que apesar de descolorir tudo que cruzava, continuava me trazendo a magnifica visão daquelas ruas e avenidas cheias de árvores, realmente um belo projeto de arborização foi implementado ali. Não me contive e tendo uma dupla de horas de sobra resolvi descer bem no centro do bairro, todas aquelas casas, grandes e arquitetadas com uma beleza grega, os monumentos e estátuas de pedra me fizeram querer explorar mais aquele local.
Não andava com muito dinheiro, apenas o essencial para o ônibus e um barato lanche da tarde, a minha reserva que era para caso precisasse de um táxi ou transporte extra viria a calhar neste dia, afinal teria que pagar por mais uma passagem de ônibus e quem sabe para entrar em algum lugar, afinal parecia um lugar aonde tudo precisava de dinheiro, muitos pedágios, parquímetros, estacionamentos privados, ali tudo era privado e pago, mas mesmo assim parecia maravilhoso e muito atrativo.
A avenida principal expressa um forte e diverso comércio, mas mesmo assim eu não me interessava por nenhuma destas vitrines, a maior beleza que podia encontrar era exatamente na calçada, essas árvores com troncos grossos e muitas ramificações sem perder o senso de resistência, e várias delas em fila ao longo da avenida, todas similares mas únicas o que dava um ótimo senso de homogeneidade heterogênea.
Por sorte havia um mapa que indicava os principais pontos do bairro, cheio de propagandas, provavelmente era um mapa pago pois indicava a localização de muitas lojas insignificantes, mesmo assim me chamou a atenção no canto do mapa uma área lacunada em verde definida como Parque-Reserva Municipal, e apesar de ficar a varias quadras dali resolvi me dirigir a ele.
Situado em algum tipo de depressão, pude ver, descendo a rua transversal, ao longe já aquele agrupamento enorme de mata nativa de certa forma organizada, estava feliz pois nunca havia visto nada similar e parecia um bom lugar para se ficar, quanto mais perto chegava percebia que era meio desabitado. Aquele patrimônio publico nos limites de toda a mais privada propriedade eram quase uma fuga daquela realidade individualista, e ali a natureza podia dividir com todos a sua beleza e seu mais agradável ambiente.
A entrada era por uma viela de pedra onde um arco anunciava o "Parque-Reserva das Colinas", algumas informações em uma placa apenas para saber as espécies, extensão e características, nada que me importasse muito no momento; não havia visto ninguém até agora e mesmo o posto da policia ambiental estava vazio sem parecer, porém, abandonado. Receoso, adentrei nas trilhas que no começo eram bem definidas e firmes, com lajotas, e as árvores se encontravam de forma organizada o que me fez acreditar que provavelmente eram reflorestadas, algo para pesquisar mais tarde.
Enquanto me distanciava da entrada, os bancos, lixeiros, placas informativas iam rareando e as trilhas começavam a se tornar mais estreitas e simples, até que chego na área de preservação e lá a trilha era um simples corte entre as árvores, uma terra batida ia guiando, nem pensava em me perder, estava seguro de que o mapa mental traçado era perfeitamente acessível e confiável.
Uma placa levemente deteriorada apontava com uma seta para uma sutil subida, que pela inclinação nem necessitava de escadas ou corrimãos, até porque se precisasse não haveria uma seta, pensei eu. Mas a subida foi longa e finalmente atingi um clarão, onde as densas árvores se ausentavam por vários metros quadrados, criando um grande campo arredondado e verde-claro apenas de grama e capim, imaginei que haveria algum tipo de pastagem ali, mas nenhuma alma viva, animal ou humana, e o dia ia escurecendo o que era agravado pelas nuvens que sobrevoavam a região, bloqueando o sol.
Tendo chego até aquele campo abobado, quis ir num topo, não muito íngreme mas relativamente alto, aonde a grama parecia mais verde e uns últimos raios de sol conseguiam traspassar a densa água vaporizada no céu. O chão estava relativamente seco, o que facilitou a subida; assim o ar, que com a subida um pouco mais acentuada, se mostrou indigno de esforço físico, estava muito seco e a garganta doía por líquido, estando longe de qualquer tipo de torneira ou lanchonete eu só podia lamentar.
Mas a lamentação foi interrompida pelo término da escalada, o topo era meu e esperando ver grande parte da cidade dali de cima percebi que na verdade esta colina era voltada para o lado oposto, um misto de fazendas e pequenas florestas, era bonito, mas me confundiu e eu esperava me lembrar de como sair dali. A altitude ao menos me ajudou a ver uma colina um pouco longe, supostamente voltada para onde seria a cidade, pelas estimativas chegaria rapidamente no topo dela, cerca de 20 minutos, e eu realmente precisava. Mas sem trilhas para seguir resolvi ir direto ao ponto e em linha reta marchei pelas áreas aonde o capim era mais baixo e eu esperava não me encontrar com nenhum animal peçonhento, afinal seria uma morte angustiante na certa.
Por fim, ao me aproximar do sopé daquele monte que era mais acentuado, verde, bem cuidado e apenas com pequenos arbustos e arvores esparsas e parecia até haver trilhas e bancos. Na verdade aquela era a colina que fazia parte do bosque, uma área que não era de mata nativa e ali ao menos havia um pouco de civilização, e realmente podia se ver uma boa parte daquele bairro, daria para ver mais se a colina não fosse situada numa depressão, o que anulava em parte a sua altitude, mesmo assim era uma sensação ótima e um lugar incrível para passar o tempo, alem de se mostrar de acesso muito mais fácil, o sol conseguia iluminar ali ainda, sendo um dos últimos lugares aonde ele se disponha a atingir, mas não por muito tempo, a noite chegava e eu tinha que sair dali rápido, não apenas por ser perigoso ficar num bosque a noite de quarta, mas também porque devia satisfações do que tinha feito e provavelmente seria inaceitável descrever esta pequena e potencialmente perigosa aventura. A trilha de descida que fiz caindo em alta velocidade, terminava logo na entrada, mas numa saída lateral que não havia visto, ao menos um sistema viário para me localizar sem ter que recorrer a pedras, arvores ou relevos.
Um ponto de onibus ali perto, que ao que tudo indicava passaria pelo terminal perto de casa. Na espera, sozinho e pensativo, já imaginei como seria a próxima oportunidade de estar lá, o que fazer e como. Talvez ler um livro deitado naquela grama diferente que acolchoava o terreno e que ao descansar os olhos das letras impressas poderia apreciar a paisagem, o provável céu azul e as bonitas casas e ruas ao longe. Combinei comigo mesmo de ir lá novamente no dia seguinte, o ônibus chegou e como a viagem seria relativamente curta, eu me sentei e apenas me dispus a conversar comigo mesmo maneiras de fazer de tardes como essas uma rotina, finalmente uma rotina para considerar. Cheguei a várias conclusões filosóficas em minha mente, varias frases de efeito, escrevi alguns livros na cabeça naqueles 20 minutos, mas foi tudo momentâneo e se perdeu ao descer do ônibus, quem dera ter escrito e poder ler agora linhas de pensamento eufóricas alegram qualquer um.
Acordei no dia seguinte e estava chovendo, a colina teria de esperar mais 7 rotações terrestres, e no final só agora que tudo começa, mesmo o marco inicial tendo sido esse dia eu nem imaginava como acabaria, eu nem imaginava o que havia começado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário